Em direção à luz?

Pós-escrito a um 2007 turbulento

É noite, e um homem engatinha, à procura da chave do carro, junto a um poste de luz. Uma mulher aproxima-se e baixa-se para ajudá-lo. Depois de procurarem por um bom tempo, a mulher pergunta: “Você tem certeza de que as chaves caíram aqui?” O homem responde: “Não. Acho que caíram em outro lugar.” “Mas… então… por que estamos procurando aqui?” – pergunta ela. “Porque aqui é onde tem luz.”

No início de 2007, o Coletivo Turbulence encomendou 14 artigos de diferentes pontos do ‘movimento de movimentos’ em todo o mundo, e perguntou a cada autor: “O que significaria vencer?”. Editamos as respostas e imprimimos 7.000 cópias, a maior parte das quais foram distribuídas na mobilização contra a reunião do G8 em Heiligendamm, Alemanha, em junho. Poucos meses depois, queremos retomar a questão da vitória.

Ao retomar nossa discussão, não surpreende que sigamos nos deparando com o problema da visibilidade. Se se pensa sobre a vitória, nossos olhos são atraídos para coisas que são altamente visíveis ou facilmente mensuráveis, como mudanças nas instituições ou nas leis, a inauguração de um centro social ou aumento no número de filiados (de qualquer coisa). São os pontos mais iluminados da calçada. Mas é preciso ver e avaliar as vitórias que haja nos pontos menos tangíveis, mas nem por isto menos reais, de todo o campo do possível. Vencer no campo do possível pode implicar maior potencial, mudanças no modo de ver ou em padrões de comportamento. Mas isto parece estar nas margens da área iluminada.

Este problema nos leva a outro: nossas experiências criam sua própria luminosidade e, portanto, suas próprias áreas escuras. Quando pensamos sobre vencer, somos arrastados pelos movimentos, pelas pessoas e pelos eventos que nos são familiares; e temos expectativas sobre como as coisas devem estar e mostrar-se para que constituam uma vitória.

Então, como podemos superar nossa cegueira noturna, quando saímos do campo que conhecemos bem e que nos é familiar? Em certo sentido, esta habilidade para olhar para fora de nós mesmos foi a chave para Heiligendamm.

Heiligendamm: Uma repetição diferente?

Em muitos sentidos, a reunião deste ano, do G8, na costa báltica alemã, foi o que esperávamos que fosse: uma repetição das mobilizações contra este tipo de reunião, que aconteceram a partir de Seattle (Praga, Gothenburg, Gênova, Evian, Cancun, Gleneagles…). Em cada um destes eventos, reuniu-se uma ampla constelação de atores, em cooperação produtiva. Cada um deles abriu um espaço e pôs em andamento processos de contaminação (muitas vezes invisíveis para os próprios atores) que foram chaves para a politização de uma geração de militantes. De um lado, deslancharam-se desafios práticos à legitimidade do comando global (rejeição ao diálogo, bloqueio de estradas que levavam ao local do encontro); de outro, produziram-se parcerias, partilhamentos e mutações, nos acampamentos e centros de convergência, durante os debates e as ações.

Contudo, mobilizações anticúpulas anteriores já nos haviam mostrado os limites destes eventos. Depois de Seattle, em 1999, tornou-se claro que os afetos produzido em ações de rua e movimentos de massa não se traduziria automaticamente em práticas diárias de transformação. Dois anos depois de Gothenburg e Gênova, sabíamos o preço a ser pago por um movimento que aceitasse a lógica do conflito quase-simétrico (prisões, militantes feridos e assassinados). E Gleneagles, em 2005, mostrou até que ponto os desejos de um movimento podem ser capturados e voltados contra o movimento, com 300.000 pessoas reunidas em marcha a favor do G8. Assim, dado que muitos já haviam visto os limites das mobilizações contra os encontros de cúpula, e Heiligendamm prometia ser repetição do que já se sabia, o que poderia acontecer, de diferente?

Às vezes, o que parece ser mera repetição, nada tem de repetição; não, pelo menos, no sentido de que seja exatamente a mesma coisa, que se repete, repete, repete. Então, em vez de voltar a um determinado ponto da curva (‘Fazer da Alemanha uma Seattle’, por exemplo), a idéia passou a ser fazer de Heiligendamm um novo ponto, um ponto inicial de um processo de devir que ainda não podia ser completamente previsto – um ponto que, esperávamos, nos levaria a ultrapassar as conquistas e os limites do passado. Menos uma repetição, que nos prendia na na imitação, mais um experimento novo na produção da política; ultrapassando, mais do que reafirmando as identidades existentes.

Na preparação para a cúpula, os grupos envolvidos na organização do projeto passaram por uma espécie de reconfiguração. Deram passos importantes na direção de se tornar um ‘movimento de movimentos’ mais genuíno. Grande número de grupos, num espectro variado, projetou e construiu uma ‘coreografia de resistência’ comum; da esquerda radical autônoma aos grupos que organizaram sessões de orações ecumênicas contra a pobreza. Ao mesmo tempo em que os elementos mais radicais tentavam impor os termos da coalizão (rejeitar a legitimidade do G8 e não admitir algumas formas de ação), havia, mesmo assim, uma disposição para construir acordos quanto às formas de ação mais apropriadas, para que casos e quando. Neste sentido, Heiligendamm ultrapassou o princípio da ‘diversidade de táticas’ que já era lugar-comum, e voltou ao processo anterior de polinizaçãocruzada. Em vez de diferentes correntes políticas engajarem-se em diferentes formas de ação – em espírito de solidariedade, mas sem ameaçar as várias identidades – o trabalho desenvolvido na Alemanha tomou o rumo de ‘tornar-se outro, juntos’. Isto implicou planejar coletivamente e implementar formas de ação novas para todos, ações e alianças que tiraram as pessoas de suas respectivas zonas de conforto, com vistas a constituir, na prática, novos ‘comuns’ e, portanto, novas potências comuns.

A quantas está o placar?

Heiligendamm não foi ‘um grande marco’ quantitativo na história do movimento antiglobalização (em termos numéricos, Gênova e Gleneagles, ambos, foram cerca de quatro vezes maiores), mas, considerados outros aspectos, parece que alcançamos um pico qualitativo. Foi uma ‘vitória’ porque foi um momento de reconstituição, também – e não é pouco – para a esquerda alemã. Contudo, para ser sentida como vitória, faltou algo: a sensação de ter derrotado o outro lado. Sem dúvida obtivemos algum sucesso contra a polícia e os organizadores da reunião de cúpula, com nossos bloqueios de massa. Mas a premiê alemã Angela Merkel também ganhou legitimidade ao apelar para que se forçassem “os norte-americanos recalcitrantes” a assinar um acordo sobre as mudanças climáticas. E o G8? Está celebrando o encontro de Heiligendamm como um dos mais bem-sucedidos de todos os tempos. O encontro foi manobrado para criar a impressão de que os líderes do mundo estão conseguindo enfrentar o ‘desafio global’ das mudanças climáticas.

Quando pela primeira vez o G8 tornou-se alvo de processos massivos, ao afinal dos anos 80, era relativamente fácil denunciar a ilegitimidade intrínseca de suas atividades. No encontro de Colônia, Alemanha, em 1999, quando responderam canhestramente à ação dos movimentos sociais no sul global (com algumas ONGs do norte) e aprovaram programas para perdoar dívidas de países pobres, praticamente ninguém o levou a sério. Mas o G8 reinventou-se. Parou de ser apenas um local no qual os principais poderes capitalistas acertavam sua diferenças, e tornou-se um circo mídiatico que se apresentou como o único fórum competente para lidar com as questões globais. Em outras palavras, quando o G8 foi atacado, ele reorientou-se; seu verdadeiro objetivo passou a ser relegitimar sua autoridade global. O G8 também aprendeu suas lições. Em Gleneagles, uma grande operação de ONGs patrocinadas pelo governo do Reino Unido reuniu 300 mil pessoas, não para manifestar-se contra o G8, mas para louvá-lo e fazer lobby a favor do perdão de dívidas nacionais e de ajuda à África.

A iniciativa que perdemos na Escócia – onde os protestos foram eficazmente capturados por uma ofensiva eficiente de relações públicas – voltamos a ganhar em Heiligendamm: o objetivo explícito de todas as principais ações era deslegitimar o G8. O problema foi que o G8 movera-se outra vez, modificara-se e, então, estava buscando legitimar-se mediante respostas amplas à preocupação de todos com a mudança climática. E foi aí que nós (nos) perdemos. As nossas ações na Alemanha não chegaram a impor qualquer dificuldade política à relegitimação do G8 no campo da mudança climática, que se tornara, já, um novo campo-chave de luta.

Como aconteceu isto? Uma das explicações é que ainda não temos uma narrativa ‘alternativa’ suficientemente potente para opor à agenda capitalista ‘verde’: por pior que seja a narrativa deles, não há qualquer coisa diferente a oferecer. Mas o problema é mais profundo que isto. A narrativa do G8 sobre mudanças climáticas é uma ficção, tanto quanto foi ficção a idéia de acabar com a pobreza do mundo. Mas não se pode contra-atacar uma ficção com outra: no momento, não sabemos como ‘resolver’ o problema das mudanças climáticas. Nenhum de nós é capaz de ver o futuro, nem mais longe nem mais claramente. Só temos podido andar de uma lâmpada de poste e sua respectiva área de luz, para outra e outra.

O que há num limite? Capital, crise e mudança climática

Não há coincidência se começar a falar sobre o G8 nos leva diretamente a falar sobre mudanças climáticas. Para os movimentos, o tema das mudanças climáticas representa a possível emergência de um novo foco, como mostra a agitação na opinião pública e eventos como o acampamento deste ano sobre mudanças climáticas no Reino Unido que, parece, repetir-se-á na Alemanha, nos EUA, na Suécia e por todos os cantos, em 2008. Da perspectiva dos governos e do capital, o tema está-se convertendo em elemento-chave para a gestão do sistema global, tanto no plano da tomada de decisões quanto no plano da legitimação política, para não falar nos novos nichos de mercado. No espaço que separa os movimentos e os governos, a questão das mudanças climáticas exemplifica a ambigüidade e a complexidade da questão do “vencer”. Se todo o ativismo ambiental enfatizou, nos últimos poucos anos, a necessidade de ampliar a conscientização sobre as mudanças climáticas como uma ameaça, então se pode considerar que 2007 foi o ano em que ‘nós vencemos’. O assunto está em todas as bocas, e todos, políticos e grandes empresas inclusive, falam sobre ele.

Contudo, aí está, precisamente, uma vitória que bem facilmente se pode traduzir em derrota. É preciso dar uma nova forma à preocupação global com as mudanças climáticas, se se quer realmente alterar o atual estado das nossa dificuldades (quer dizer, se se quer realmente reduzir o volume das emissões de dióxido de carbono, em pouco tempo). Em parte, isto quer dizer que é preciso construir uma nova narrativa, de modo que se consiga impedir que tudo seja convertido em apenas mais uma oportunidade para que o capital aufira lucros ainda mais descomunais. Sem isto, facilmente se verá a mudança climática usada para dar suporte a um novo regime de opressão sobre os governados, e como pretexto para autorizar ‘soluções’ como aumentar a ‘segurança’ das fronteiras, na medida em que crescerão as tensões geopolíticas. Mas, se a luta visa a ganhar mais do que apenas uma disputa pela opinião pública – luta na qual sempre estamos na defensiva -, então será preciso lutar também no nível da produção e da reprodução social.

Freqüentemente pensamos nas mudanças climáticas como um problema técnico-ambiental que exige uma solução técnico-ambiental: o problema é o excesso de dióxido de carbono lançado na atmosfera, logo, a solução é reduzir as emissões a níveis ‘aceitáveis’ mediante a inovação tecnológica, legislação e, com os cidadãos, sempre, ‘fazendo sua parte’. Há aí uma dupla dificuldade. Primeiro, porque praticamente tudo o que fazemos é movido a petróleo e gera emissões de CO2: de viajar a trabalhar, até ligar para o trabalho dizendo que se está doente para ficar em casa assistindo DVDs. Segundo, os cortes necessários (de 60 a 90% antes de 2050) são tão grandes , exigem mudanças tão drásticas que não podem ser resolvidos apenas com uma reunião de ministros do meio-ambiente do mundo inteiro.

Um modo alternativo de entender a mudança climática é pensá-la em termos de metabolismo. O metabolismo da Terra, sua capacidade para processar o carbono, trabalha em velocidade muito menor do que o metabolismo do capitalismo contemporâneo. A economia está em rota de colisão contra a biosfera. Aqui, estamos falando de impor limites à expansão do capital e de uma possível crise de acumulação.

O capital tem uma relacão peculiar com limites. Ele tem uma dinâmica interna de expansão que tem de ser satisfeita; portanto o capital vive de ignorar limites, subvertê-los, escamoteá-los ou, de um modo ou de outro, superá-los. O segredo da longevidade do capital é, precisamente, esta habilidade para usar os limites e as crises que o próprio capital engendra, como uma base de lançamento para outra rodada de acumulação e expansão. Bom exemplo deste dinamismo é a emergência da fase conhecida como Keynesiana/Fordista do capitalismo. Os altos níveis de organização da classe operária industrial na primeira metade do século 20 – não apenas a Revolução Russa, mas a intensa luta que se travava então em todo o mundo – foi um limite à expansão do capitalismo, e ameaçou não apenas parar aquela etapa de acumulação mas, também, destruir todo o sistema, completamente, de uma vez por todas. O Estado de Bem-estar foi resultado direto daquelas lutas, mas, ao mesmo tempo, foi também um modo de neutralizar a ameaça. O grande feito do capital foi firmar uma espécie de ‘acordo’ de produtividade que, de fato, transformou o que havia sido uma limitação em motor que acionou uma nova fase de crescimento capitalista.

O que uma análise da resposta genérica do capitalismo a crises-de-limite nos conta sobre as respostas que há à mudança climática? Não há dúvidas de que a mudança climática é um limite que tanto impõe riscos quanto cria oportunidades para o capital. Muitos estão tentando agarrar-se a esta oportunidade de aproveitar este novo limite, esta crise potencial, para convertê-lo em novo motor para a acumulação. Basta ver o entusiasmo com que se começa a comprar e vender direitos de emitir Carbono: Créditos de Carbono, Excedentes de Carbono, Quotas Comercializáveis de Carbono Emitido, mercado futuro de carbono. E há também o consumismo ‘verde’: carros ‘verdes’, painéis solares, coberturas ‘verdes’ para residências e prédios. Será que a mudança climática injetará um novo dinamismo na economia global? Estaremos entrando numa nova fase do capitalismo, um capitalismo ‘verde’ onde a atmosfera será aberta ao investimento como foi o ciberespaço nos anos 90? É possível. E é óbvio que é muito improvável que isso va eliminar radicalmente as emissões de carbono!

Qualquer solução capitalista será, bem,… capitalista. Assim como os efeitos das mudanças climáticas são desigualmente distribuídos, e são muito mais devastadores para os pobres – basta lembrar o impacto do furacão Katrina em New Orleans – assim também as soluções que se consideram hoje ajudarão a reforçar as desigualdades que já existem. Muitos impostos ‘verdes’ farão subir o preço dos bens e serviços essenciais, limitarão a mobilidade e o acesso à comida e à calefação. Acesso ao trabalho, à comida e a condições dignas de sobrevivência sendo necessariamente ligado ao dinheiro? Nada de novo, então: são sempre as mesmas regras do jogo que conhecemos. Exceto que, agora, passarão a ser explicadas porque seriam necessárias para salvar o planeta. Não espere do ‘capitalismo verde’ nada mais que outro regime de autoridade e disciplina que pesará mais sobre os pobres do que sobre os ricos, em nome de ‘um bem maior’.

O olho do furacão

Mas o capitalismo nem é um vencedor absoluto nem é invencível. Se as mudanças climáticas abrem um novo momento de crise, é preciso tentar entender a dinâmica desta crise.

Um aspecto-chave é a variável tempo, entendida de dois diferentes modos. Primeiro, há um problema de defasagem temporal (time lag). Os resultados de decisões diferentes, em termos de mudanças climáticas, só podem ser sentidos décadas depois. Dada a inércia térmica do sistema climático, há enorme defasagem temporal entre causa e efeito. Isto significa que se os impactos da mudança no clima ficarem ‘fora de controle’, eles poderão permanecer incontroláveis por várias décadas. Segundo, todas as evidências apontam para a urgência do problema. Se temos de evitar os ‘pontos críticos’ – pontos nos quais a mudança climática torna-se potencialmente irreversível e catastrófica para a maioria da população da Terra (a morte da floresta Amazônica seria um exemplo de mudança irreversível) -, então as emissões têm de ser drasticamente reduzidas na próxima década.

Há um lado positivo neste sentido de urgência. Parte importante do ativismo de ‘conscientização’ dos dez últimos anos não trabalhava com nenhuma variável temporal; visava ao ‘público’, a um ‘outro’ genérico que tinha de ser informado sobre o que está acontecendo. Por isto, não havia prazos, nenhuma agenda, nenhum sentimento de escalada nem metas específicas; quanto tudo está acontecendo ‘neste instante’, não há prazos. A urgência da mudança climática faz surgir questões importantes que só se vêem hoje por causa da variável tempo; são questões de estratégia e de tática.

E assim voltamos à questão do vencer. Por exemplo, há quem diga que não se pode fazer nada tão grande em prazo tão curto e que, portanto, o melhor a fazer é começar a nos preparar para o pior. Podemos apagar a luz e caminhar direto à escuridão. Outros dizem que o problema é tão formidavel e nos pressiona tanto que só um corpo centralizado seria capaz de enfrentá-lo. Frente ao abismo do desconhecido, sempre parece tentador voltar atrás, de volta à luz reconfortante do Estado. Mas aí está um tipo de luz que tanto ilumina quanto ofusca e cega.

Consideremos o exemplo das viagens aéreas. O crescimento da aviação é claramente um enorme problema ambiental, e é fácil deixar-se seduzir pela idéia de apoiar novos impostos e taxas sobre viagens aéreas, ou, mesmo, passar a ver as pessoas que viajam de avião como parte do problema. Mas focar esta questão pode tornar ainda mais difícil entender como operam outras dinâmicas que há aí. Ao restringir nossa autonomia ou ao se reforçarem as instituições capitalistas e do Estado, algumas das soluções propostas para enfrentar o problema das mudanças climáticas poderão acabar por ocultar outras lutas e, assim, dificultar ainda mais o trabalho de enfrentar as causas maiores da mudança climática. Precisamos de uma lente – uma abordagem ou uma ética – que nos permita propor a questão de como uma política para as mudanças climáticas pode entrar em ressonância com outras lutas. Não porque os movimentos precisem de alguma conexão explícita, consciente, para que haja ressonâncias entre eles; eles não precisam. Mas precisamos, sim, trazer à luz todas as ressonâncias e as dissonâncias. Depois de vermos os caminhos, é mais fácil trilhá-los.

Ao mesmo tempo em que não podemos nos deixar cegar pela luz ofuscante do Estado, não basta fecharmos os olhos. De olhos fechados, não saberemos como nos relacionar com as instituições. Como fazê-lo? Alguns eventos recentes na América Latina talvez nos ajudem a encontrar algumas pistas.

Mudar o mundo, tomando o poder?

Os últimos anos têm visto o surgimento e a instalação de governos em diferentes tons de vermelho, na América Latina. A Venezuela de Chávez, a Bolívia de Morales, o Brasil de Lula têm sido objeto de discussão em todo o mundo. Mas também há o Equador de Rafael Correa, o Uruguai de Tabaré Vasquez, a volta de Daniel Ortega na Nicarágua e, menos claramente, de Michelle Bachelet no Chile e dos Kirchners na Argentina. Estes processos nacionais não são independentes. Estão relacionados em pelo menos dois aspectos: primeiro, que dão sinal de que o modelo neoliberal perdeu o gás na região; e, segundo, que o movimento dos movimentos conseguiu impôr sua marca num nível institucional.

Mas o que fazer deste sucesso institucional? Há quem veja estas vitórias eleitorais como o único resultado concreto dos anos pós-Seattle. Neste sentido, ‘vencer’ seria, ao mesmo tempo, a derrota do ‘movimentismo’ deste período: confirmação de que seria impossível ‘mudar o mundo sem tomar o poder’. Por esta lógica, só restaria garantir que, uma vez chegados ao poder, os partidos e grupos que surfaram a onda da resistência consigam produzir mudanças dentro dos limites impostos pelas instituições. Mais que isto, estes partidos e grupos que ascenderam ao poder devem também conseguir mudar as instituições de modo a que se tornem mais permeáveis a esta ‘pressão dos debaixo’. E dá-se por pressuposto que esta pressão só cumprirá o papel que se espera dela se puder ser traduzida em formatos institucionais.

Ao mesmo tempo em que não podemos subestimar os avanços que acontecem, tão claros, na América Latina, vale a pena considerar as implicações desta visão de mudança social.

Primeiro de tudo, é importante não esquecer que há algumas diferenças importantes entre aqueles vários países. Deles, só o caso de Morales corresponde diretamente ao quadro de uma crescente onda de resistência que levou à vitória eleitoral. A história da Bolívia nos últimos dez anos foi pontuada por momentos de radicalização que sempre foram capturados pelo sistema político existente, apenas para que, outra vez, as questões fossem deixadas sem solução. À medida que os episódios de resistência foram-se tornando mais freqüentes e mais fortes, eles forçaram o rearranjo de todo o sistema que levou ao poder o MAS (Movimiento al Socialismo) de Morales. No Brasil, aconteceu uma onda semelhante nos anos 80 que foi três vezes derrotada nas urnas, antes de que Lula fosse eleito. Então, o Partido dos Trabalhadores já se havia transformado em tradução, no nivel partidário, de um movimento em refluxo (oMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, talvez, tenha conseguido manter-se à parte desse refluxo). Na Venezuela, apesar de um ressentimento difuso contra a impermeabilidade das instituições e as políticas implementadas nos anos 80 e 90, não houve qualquer movimento semelhante, ou quaisquer movimentos no sentido literal. Chávez atuou como catalisador de uma intensificação da mobilização e da participação de que jamais se ouvira falar na história da Venezuela. Resta saber se Chávez deve ser visto como apenas um catalisador, ou se se tornou agora o pilar sem o qual tudo poderá ruir.

Mais importante que isto, a idéia de que estas vitórias eleitorais são os unicos resultado práticos da última década falha em dois aspectos relacionados entre si. Primeiro, porque pressupõe que só haja ‘política’ nos espaços institucionais nos quais normalmente procuramos por ela. Deixa-se sem considerar, neste caso, toda uma série de redes, infra-estruturas, conhecimentos, culturas etc. – uma teia difusa de inteligência coletiva e memória que, de um modo ou de outro, está sempre ativa, sempre produzindo mudança e cristalizando-se como força antagonista em pontos cruciais. A escalada da resistência na Bolívia antes da vitória do MAS é bom exemplo disto. Tudo o que ‘desaparecera’ depois de cada flash ‘voltou’ maior e mais forte. E só pôde ser assim porque jamais sumira completamente.

Segundo, esta idéia ignora o fato de que os movimentos, desde que continuem a mover-se, têm meios para fazer e produzir mudanças que não precisam vir a ser políticas institucionais, nem precisam, sequer, ser reconhecidas por elas. Os movimentos pode fazê-lo, por exemplo, ao transformarem o discurso público, ao tornar inaplicável a legislação, ou, simplesmente, mediante o poder que têm de se autogerirem e constituírem-se autonomamente.

E se houver um novo ciclo de lutas e não formos convidados?

Esta questão do poder dos movimentos nos leva de volta ao ponto de partida. Como explicou a primeira edição de Turbulence, tínhamos três principais razões para produzir uma publicação para a reunião do G8 em Heiligendamm. Primeiro, uma razão muito pragmática: seria relativamente fácil distribuí-la para um público amplo. Segundo, nossa experiência ensina que as mobilizações anti-cúpulas são espaços nos quais as pessoas estão mais abertas a idéias diferentes. A terceira involve uma aposta mais complexa.

Desde Seattle, as mobilizações anti-cúpulas têm sido a face mais visível do movimento de movimentos, o modo como o seu papel como força global tem-se manifestado de modo mais explícito e, também, são o momento em que melhor se podem aferir sua força e suas orientações. Pelo mesmo molde, as mobilizações anti-cúpula são também o momento em que mais claramente se vêem suas limitações potenciais.

Por um lado, a aposta era o que todos se perguntavam a caminho de Heiligendamm: o quanto este evento será mesmo socialmente relevante, grande, transformador? Será um último suspiro, um novo começo, ou nenhuma das anteriores? E, tão importante quanto a primeira pergunta: aconteça o que acontecer, como saberemos identificar o que acontecer lá?

Mas se criticamos os que só reconhecem mudanças que ocorram no nível institucional, os ‘movimentistas’ não seremos também igualmente culpados por procurar respostas sempre nos mesmos lugares? Aqui estamos, outra vez, escrevendo sobre as cúpulas e sobre contra-cúpulas. Talvez o impasse dos últimos anos tenha surgido precisamente porque as pessoas não tenham encontrado respostas nos pontos em que as procuraram e não começaram a procurar em outros. Por mais desfocada que nossa imagem nos tenha aparecido no espelho, será que não nos enamoramos tanto dela, a ponto de não termos olhado à nossa volta? E se houver um ‘novo ciclo de lutas’, e não formos convidados?

Pense sobre o que aconteceu na periferia de Paris, nos banlieues, no outono de 2005. Qualquer pessoa da esquerda ‘estabelecida’ – partidos, sindicatos, ‘ativistas’; se você sabe de quem estamos falando, você é um! – que tentar dizer que os que se revoltaram estão “conosco” em qualquer sentido que não seja puramente abstrato, é culpadade tentar apropriar-se de uma luta que não é sua com o objetivo de “representá-la”. Claro, eles lutam contra muitas coisas contra as quais nós também nos opomos. Mas consideremos as três grandes linhas que se observaram na reação da esquerda ‘estabelecida’. Uns enquadraram os banlieues em moldes pré-fabricados e os converteram em ‘prova’ de alguma ‘nova fase do capitalismo’. Para outros, os banlieues manifestaramo terror de uma dissolução social que exige a intervenção do Estado para redistribuir riqueza e oportunidades no longo prazo (mas também, no curto prazo, a intervenção como poder de polícia a fim de evitar uma guerra civil). Ou, finalmente, as pessoas nos banlieues apareceram como um ‘outro’ abstrato e romântico, cuja radicalidade bruta e sem compromissos – todo o sex appeal de uma revolução de cartaz – merece, como retribuição, uma solidariedade igualmente abstrata.

Se isto é tudo o que ‘nós’ – partidos, sindicatos, ‘movimentistas’ – temos a oferecer, vamos reconhecer que somos parte do problema. Mesmo os membros pretensamente mais ‘radicais’ da esquerda estabelecida só são capazes de interpretar os banlieues como erupção de pura negatividade, uma ‘força da natureza’, mais do que como trabalho de pessoas reais. Os políticos do mainstream, só vêem neles a cara do medo: estamos às vésperas da guerra civil! Para outros, em si eles não são nada, mas, como variável não definida, podem caber em qualquer lugar da teoria: “Vejam! Nossas previsões se confirmaram!”. Os últimos simplesmente eliminam o evento; aconteça o que acontecer, tudo significará sempre a mesma coisa. Os dois primeiros reconhecem o evento, reconhecem que algo aconteceu, mas o vêem como algo tão além de qualquer explicação possível que só pode ser interpretado como as trombetas que anunciam o fim do mundo (algo a festejar ou lamentar, conformeo gosto do freguês).

As três posições ignoram o fato que, se os banlieues nos põe diante de um problema, é um problema de carne e ossos. Os banlieues revelam um vazio no nosso conhecimento: enquanto este vazio não for preenchido pelos homens e mulheres que vivem nos banlieues – as suas palavras, nas suas vozes, encontradas nos seus próprios termos – ‘nós’ estaremos fazendo o jogo que exclue ‘eles’. Pior: ao nos propormos como intérpretes daqueles com os quais não falamos, ‘nós’ ativamente reproduzimos o mesmo jogo. E há algum troco em moeda política a auferir nesse negócio, mesmo para o mais marginal grupúsculo de ultra-esquerda que finja falar em nome dos que foram deixados do lado de fora do portão. O verdadeiro desafio, portanto, está em efetivamente abrir os portões e deixar entrar os ‘de fora’. Ou, melhor ainda, em derrubar de uma vez toda a parede. Mas um tal grau de coordenação só é possível atraves de um trabalho político de verdade, com pessoas de verdade. Temos pouco a ganhar alimentando nossos egos com a ilusao de que vagos sentimentos de ‘solidariedade’ fazem qualquer diferença no mundo real.

Outro exemplo: já há mais de um ano, diferentes cidades da Espanha têm visto crescer um movimento novo provocado pela impossibilidade de se conquistar uma ‘moradia digna’num ambiente de especulação imobiliária fora de controle. O movimento começou quando, no auge dos protestos contra o “Contrato de Primeiro Emprego” (CPE) na França, um indivíduo anônimo despachou uma mensagem de e-mail convocando para um dia de manifestações pela ‘moradia digna’ (direito nominalmente garantido pela Constituição Espanhola). O e-mail circulou e, no dia marcado, as ruas foram tomadas por centenas de pessoas – taxistas, cabeleireiras, além de ‘ativistas’. No segundo dia de protestos autoconvocados, eram milhares. Desde então se criaram várias assembléias locais, muitas das quais continuam ativas.

As reações dos ‘ativistas’ a esta luta por moradia tem sido interessantes. Vão desde a confusão (‘Como pode haver um protesto, e eu não sei quem convocou?’), até o desejo de desaparecer no fundo do palco (‘Na assembléia, todos são iguais. Ninguém deve esperar que nós tenhamos algo de especial a dizer’), até o reconhecimento de como seus específicos conhecimentos poderiam ser úteis (‘Bem, já organizei um protesto uma vez, e aprendi que funciona melhor se fizermos isto ou aquilo…’). Os que tinham menos vivência na política, por outro lado, pareceram andar, às vezes, na direção oposta: o caso mais notável foi o momento em que a assembléia de Madrid, a certa altura, discutiu se a assembléia deveria participar um protesto que ela não havia convocado – ‘Agora somos o espaço no qual o movimento está organizado; portanto, só nós podemos decidir estas coisas’; ‘Mas tudo não começou com uma manifestação espontânea? Você não participou?’; ‘Participei, mas isso foi antes de haver uma assembléia!…’

Tudo isto chama a atenção para o fato de que não importa o significado que demos ao rótulo ‘movimento de movimentos’, ele não oferece garantia alguma. ‘Seattle’ ou ‘Cancun’ ou ‘Heiligendamm’ não significam que ‘nós’ sejamos o início, o meio e o fim da mudança social. De fato, estes rótulos sequer significam que exista algum ‘nós’. E pretender que exista, e que a história seja exclusivamente nossa para que nós a façamos, apenas nos impedirá de ver o lugar no qual nos encaixamos. (E se nos encaixamos em alguma coisa, a lógica ensina que, obviamente, não somos o todo.)

Em direção à luz?

Este road movie de pensamento que tentamos construir aqui – de Heiligendamm à América Latina, das políticas sobre mudança climática aos banlieues, ao movimento dos movimentos e de volta ao ponto de partida – começou quando tínhamos uma pergunta e alguns milhares de cópias impressas para distribuir; e cá estamos, sempre, às voltas com alguns poucos temas e assuntos que insistem em nos acompanhar.

Começamos com o tema da visibilidade, porque ele esclarece a relação entre os movimentos e sua dinâmica de auto-reprodução. É relativamente fácil pensar na relação entre os movimentos e a política institucional, como nos experimentos eleitorais na América Latina, ou no processo dos fóruns sociais, ou nas recentes tentativas de realinhamento dos centros sociais em toda a Europa. Conforme a perspectiva que se tenha, aí estão exemplos de movimentos que ‘se renderam’, ou que ‘amadureceram’ ou que ‘foram recuperados’. Mas estas três posições cometem o erro de ver as formas institucionais como algo separado dos movimentos. Ou, dito de outro modo, estas três posições vêem os movimentos como corpos independentes, com um ‘dentro’ e um ‘fora’, em vez de vê-los como uma perpétua movimentação das relações sociais.

Conforme os movimentos movem-se, eles constantemente lançam novas formas de organização e de prática que não cessam de estabilizar-se e consolidar-se. Claro que isto pode ser problemático: depois de estabelecidas, as identidades e os rituais podem converter-se em enormes obstáculos à mudança. Mas isto não implica que os movimentos morram tão logo comecem a criar raízes, ou tão logo sejam expostos nas áreas mais iluminadas. Este processo é também um modo pelo qual os movimentos podem passar a emitir luz própria. O ‘movimento dos movimentos’, por exemplo, é uma institucionalização de um certo momento das lutas, com Seattle como um de seus pontos altos. Também ajudou a gerar toda uma série de outras instituições, que cresceram segundo suas próprias dinâmicas. Houve protestos anti-cúpulas, por exemplo, em todo o mundo, cada um deles construído a partir dos outros e introduzindo modificações, umas mais, outras menos sutis. Quando aquele ciclo de protestos parecia estar começando a diluir-se, começou o processo do Fórum Social, construindo um tipo diferente de experimento. Depois do FSM de 2007, no Kenya, fortemente patrocinado e controlado por ONGs, muitos sentiram que este também haviase esgotado. Mas, alguns meses depois, o Fórum Social dos EUA mostrou que era possível organizar algo que não duraria apenas alguns dias, mas que produziria efeitos de polinização cruzada e de coordenação de diferentes lutas.

De fato, os recentes encuentros promovidos pelos Zapatistas demonstraram este problema de forma bastante clara. Eles ofereceram um encontro entre, de um lado, as visões ‘movimentistas’ de autonomia , horizontalidade e práticas não-hierarquizadas; e, de outro lado, uma tentativa concreta de converter estas visões em trabalho de campo – sob ameaça real de ataque por tropas paramilitares e cercada por forças hostis. Muitos ‘movimentistas’ viram por dentro como funcionam as ‘Juntas de Bom Governo’, experiência de autogoverno de longo prazo, das municipalidades zapatistas autônomas. Aspecto impressionante desta experiência foi estar em um espaço em que o exército armado – o EZLN – está conosco, não contra nós. Mas, se estamos seriamente empenhados em produzir mudanças visíveis e tangíveis, como será possível fazê-lo sem criar instituições, sejam de que tipo for? Que outro meio há, para criarmos outros mundos?

Há ainda outro tema, de luz e luminosidade. Quando perguntamos ‘o que significa vencer?’, justamente não estávamos pedindo a ninguém que nos desse o seu programa de dez pontos. Não queríamos ‘iluminados’. Em vez disto, queríamos afirmar uma política que reconhecesse que ninguém tem a solução, que mudar o mundo é, pelo menos em parte, um processo de investigação partilhada e que, como primeiro passo, podemos começar por propor questões em comum. Este é um mundo radicalmente diferente daquela da velha “política da certeza”, dominada por confrontações polêmicas, em que diferentes identidades e abordagens políticas engalfinham-se umas contra outras, recriando nichos identitários ou ideológicos.

Claro que a idéia de iluminação total é uma fantasia. Mas é uma ilusão tentadora, ligada ao mito do conhecimento total. Se se olha diretamente para o sol por tempo suficiente, uma imagem fica gravada por dentro das pálpebras. Depois que o G8 capturou a questão da mudança climática, muitos concluíram que só nos falta a narrativa certa, que mostre que apenas nós temos ‘a resposta’. Em vez de adotar esta abordagem, com todos os seus tons de poder dual e de contra-hegemonia, parece mais produtivo aprender outra lição com Heiligendamm. Quando as pessoas preparavam-se para bloquear as estradas que levavam à reunião da cúpula, um último conselho foi passado: “Ao se aproximar das barreiras de policiais, não olhe para eles – olhe para os vazios entre eles.”

Finalmente, há um terceiro fio que amarra a idéia de luz e de visibilidade. Neste texto, usamos a idéia de ‘mover-se em direção a luz’, no sentido de cada um tornar-se visível, aparecer e ocupar espaço. Mas há outro sentido, diferente, que aparece nas experiências chamadas de “quase-morte”: vê-se uma luz e uma voz convida a mover-se em direção a ela. Em certo sentido, mudar significa morrer. Significa abandonar a zona de conforto, ceder parte do que se é, abandonar hábitos e certezas. Em sentido mais amplo, os movimentos têm de aprender a flertar mais com a própria morte, com a possibilidade de deixar de existir, para que algo possa nascer. Nos atreveremos a fazer esta aposta? A dar este salto de fé? Nos atreveremos a saltar sobre estes vazios, mergulhar no desconhecido, entrar na luz?

Dezembro, 2007

Traduzido por Caia Fittipaldi

Translations: EnglishGermanItalian and Spanish.

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